Ecos de um tiro nos subúrbios. Por Nei Lopes e Nilson Lage
63 anos atrás e meus quase 59 não poderiam ouvir.
Nem o tiro, nem o rádio.
Mas passei a ouvir, ainda criança, na vida suburbana, de neto de operários que nasceu filho de professores, por causa daquele de quem, menino, quase só ouvia falarem bem e, depois de que virei “intelectual” (o que, por aqui, significa completar o secundário e entrar na “faculdade”) só ouvia falarem mal.
Mas duas figuras, estes dias, escreveram sobre aquele tiro que se ouviu pelo rádio, 63 anos. E que ainda ressoa nas memórias e o desejo de sermos um país.
Outro agosto
Nei Lopes
A manhã daquele dia 24 de agosto corria aborrecida. Aula de matemática já no segundo tempo, aquelas raízes quadradas perturbavam a mente; e as equações, embora de primeiro grau e com apenas uma incógnita, incomodavam a digestão do café-com-leite pão-e-manteiga da entrada.
Era uma época em que o politicamente correto também não existia. Em que chamar a gente de “crioulo”, “miquimba”, “tiziu”, “pau queimado” não tinha nada de mais. Pois até o Oscarito, atendendo a exigências do script, de vez em quando sacaneava o Grande Otelo. Como por exemplo, naquela cena engraçadíssima cena em que ele encostava o cotovelo preto do parceiro junto à boca e ligava: “Alô!!!”
Ser preto ou branco naquele tempo eram circunstâncias até celebradas. Como naquelas disputas de futebol incentivadas pelos instrutores de ginástica. De um lado, o esquadrão formado por Álvaro, Russinho e Paulo Emílio; Breno, Glauco eAlemão… Esqueço. Do outro, o nosso: Chaminé, Azeitona e Jamelão; Chocolate,Blecaute… A memória me falha. Até mesmo quando invento nomes, para preservar a identidade dos colegas.
Pois bem. Café da manhã, aulas de “Cultura Geral” (latim, francês, inglês, canto orfeônico…) até a hora do almoço. “Cultura técnica” (mecânica, fundição; marcenaria…) à tarde. “Cultura Física” até o anoitecer. Jantar. Leitura e cama, para o pessoal do Internato; volta para casa, abatido, mas esperançado da vida, para nós semi-internos.
Mas o bom mesmo eram os intervalos e tempos vagos. Quando trocávamos nossas experiências musicais comunitárias. E foi aí que conheci os sambas da longínqua Tijuca, que anos depois me levariam à dupla condição de acadêmico: na Faculdade Nacional de Direito e na Academia do Salgueiro. Mas voltemos a 1954.
A escola ocupava um terreno de vários alqueires, pertinho da Vila Militar, no subúrbio carioca de Deodoro. E naquela manhã de agosto a aula parecia não terminar nunca.
Até que, providencialmente, chega à porta o inspetor-geral. Pede licença, entra, visivelmente nervoso, cochicha alguma coisa no ouvido do professor e sai, quase chorando. Expectativa geral. O mestre, perturbado também, mas fleumático, despe o guarda-pó, limpa o giz das mãos, vai vestindo o paletó enquanto avisa:
– As aulas estão suspensas. O Presidente da Republica acaba de cometer suicídio.
Um a um, então, fomos saindo, caras-de-pau tentando mostrar tristeza, quando por dentro o que rolava era a adrenalina (já havia, naquela época?) da alegria, por aquele feriado inesperado. Em vez de equação, a pipa no alto e o pião gungunando; no lugar das razões e proporções, o racha, a pelada, o refresco de groselha, a paçoca e o pé-de-moleque. Ledo engano!
Em casa, minha mãe chorava e meu pai ouvia o rádio, lívido. Minhas irmãs arrumavam a casa compungidas. E meus irmãos iam chegando do trabalho, para o funeral de nossas ilusões.
Na ingenuidade dos meus 12 anos eu não poderia imaginar que a partir dali tudo seria diferente: ensino, família, saúde, trabalho… De bom, mesmo, só ficou aquele samba-enredo arquetípico, talvez o melhor de todos os tempos, da fina lavra do saudoso Padeirinho da Mangueira. Cantem comigo!
“Salve o estadista, idealista e realizador…”. A voz embargou. Desculpem.
O bonde parou
Nilson Lage
Era manhã, acordei cedo, liguei o rádio, procurei notícias.
Elas vieram. Repetiram.
Houve um furo, minuto talvez de silêncio.
Começou a leitura do necrológio: “Getúlio Dornelles Vargas nasceu em São Borja, Rio Grande do Sul…”.
Barulho na rua, corri para a janela.
Na Rua Souza Barros, Engenho Novo, Rio de Janeiro, em frente ao 201, o bonde parou, as pessoas perplexas. Motorneiro, condutor e passageiros sentaram no estribo. Mãos na cabeça, caras de espanto, todos choravam.
Horas antes, os de sempre gritavam horrores do homem.
Foi exatamente há 63 anos
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