O menino e o poeta
06/03/2012 15:44 |
Autor: Pedro Corrêa do Lago
Pouco depois da Segunda Guerra
Mundial, o telefone passou a substituir quase todos os bilhetes até então
enviados para pequenos recados. Nada destinava portanto a carta reproduzida
nesta página − escrita em 1948 por um menino de dezesseis anos e dirigida a um
escritor consagrado − de sobreviver ao destino comum a tantos outros milhões de
missivas manuscritas, lidas e descartadas.
Neste caso, o que salvou do lixo esta folha de papel foi a
decisão casual do destinatário de usar o verso em branco para o rascunho de um
artigo que precisava escrever para um jornal.
O grande escritor que recebe a carta é o poeta e romancista Jean
Cocteau, talvez o mais importante animador cultural da França no século XX.
Cocteau tinha tantos talentos que, por muito tempo, uma maioria de invejosos
não aceitou que pudesse exercê-los de forma tão plena. Se tivesse sido apenas
romancista seria lembrado hoje por uma obra significativa. Se apenas poeta,
estaria entre os mais respeitados. Sua simples obra de cineasta também teria
lhe valido uma sólida posteridade entre os maiores diretores franceses de seu
tempo, assim como seu trabalho de desenhista se destacaria entre as obras
semelhantes do período.
Mas como Cocteau era bom em tudo, a tendência natural de seus
contemporâneos foi acusá-lo de ser superficial em cada coisa que
fazia. Uma tal variedade de talentos nunca poderia ser perdoada em vida e
só agora − quase cinquenta anos após sua morte − a figura de Cocteau emerge
finalmente com uma plena aceitação da qualidade de suas múltiplas obras.
O acaso quis então que Cocteau usasse o papel da carta do garoto
para escrever seu artigo de protesto contra a censura a um filme de um cineasta
francês, que causava polêmica na época
Já muito famoso em 1948,
Cocteau dispunha de uma legião de amigos, amantes e secretários que recolhiam
seus rascunhos e manuscritos, esparsos nas folhas que encontrava à mão quando
precisava escrever. Com isso foi preservada a carta do menino de dezesseis anos
que pedia ao “Mestre” Cocteau que comparecesse à exibição sua própria
obra-prima, filmada em 1932, “O Sangue de um Poeta”, que o jovem admirador
queria mostrar no âmbito de um cine-clube que pretendia criar.
Antes das fitas de vídeo, dos DVDs e da internet, assistir a um
filme era um privilégio que dependia da iniciativa dos detentores dos rolos,
quase sempre as distribuidoras ou salas de cinema estabelecidas. Como estas,
por razões comerciais, raramente ou nunca voltavam a exibir filmes antigos,
cabia aos fãs e conhecedores de cinema organizarem cineclubes.
Hoje bastam apenas três cliques de internet para se chegar pelo
menos a um trecho, senão à totalidade, de muitos clássicos do cinema. Na época
havia quem viajasse um dia inteiro de trem para assistir a um filme raro
programado numa cidade distante. O menino precoce de dezesseis anos era um
desses apaixonados, e sua carta para Cocteau é comovente:
“Mestre,
aqui nada de lisonjas, nada do blá blá blá usual, nenhuma dessas fórmulas
clichês que só tem como objetivo dissimular a verdadeira personalidade daqueles
que as empregam.
Estou
fundando um clube de cinema que não dispõe de publicidade de qualquer tipo.
A
sessão inaugural ocorrerá domingo dia 14 com a exibição de “O Sangue de um
Poeta”. De sua presença ou ausência depende a vida ou a morte de meu “Círculo
Cinemania”. Este Circulo é como uma criança prematura, tem pouca chance de
sobrevivência.
Precisa
de uma incubadeira − que só pode ser o senhor. Se aceitar apresentar seu filme
domingo, às 10 da manhã, a criança sobreviverá. Senão, será mais um natimorto.
É
com um pouco de angústia e muita esperança que aguardo, mestre, a sua resposta.
Receba, com esta súplica, minhas saudações de muito respeito e admiração”.
Cocteau não compareceu à abertura e o “Circulo Cinemania”,
conforme previa o menino, morreu. Dez anos mais tarde, Cocteau compareceria à
consagração no Festival de Cannes da primeira das muitas obras primas do menino
que lhe escrevera, e o velho poeta manifestaria com entusiasmo toda sua
admiração pelo talento do jovem cineasta. O menino chamava-se François
Truffaut.
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